quarta-feira, 6 de março de 2013


Entre a língua culta e a linguagem coloquial: beleza e encantamento poético.

Geraldo Fonte Boa

No ano de 1946 publicou-se o livro “Rosário de Capiá – Poemas Cablocos”  do poeta e declamador José Bento de Oliveira, conhecido por “Nhô Bento”. Os temas são de uma simplicidade encantadora, o ritmo envolvente e as poesias lindas. Plena de simplicidade e de encantamento. O livro de poesia foi prefaciado por nada menos que Monteiro Lobato.

Os poemas, lidos hoje, são um convite ao mergulho em nossa cultura popular sem, no entanto, deixar de ser um aprofundamento na literatura, visto que a forma utilizada pelo autor exige do leitor o esforço de compreender como a língua expressa que constrói a si mesma. Parece contraditório, pois os poemas utilizam-se da fonética e linguagem coloquial para se expressar, mas o que eles ensinam é a linguagem culta, a forma como esta linguagem vai, paulatinamente, se constituindo e se transformando.

O próprio Monteiro Lobato diz em seu prefácio: “A evolução da língua é curiosíssima e inteligentíssima, como todas as evoluções não atrapalhadas pelos breques dos artificialismos. A forma escrita das línguas é um artificialismo tremendamente embaraçador da evolução natural das línguas.(…) E acentuaria que o mesmo direito que tiveram os portugueses de corromper do latim e transforma-lo em língua portuguesa, temos nós letrados, de corromper a língua portuguesa e transforma-la na “língua brasileira”;(…)” . Assim sendo, penso que a linguagem fonética e, porque não, coloquial utilizada nos poemas de José Bento de Oliveira revela um certo fenômeno natural comum no dia a dia do uso da língua. Este fenômeno natural é, no entanto, o motor do desenvolvimento da língua, em que o coloquial vai sendo apropriado e incorporado pela linguagem culta, dando a ela uma nova roupagem, novos significados. Não teria sido isso que ocorrera com a língua Tupi, quando o Pe. José Anchieta buscou codificar por escrito tal língua?!

Mas voltemos ao livro “Rosário de Capiá”. Provavelmente você não deve saber do que se trata “Capiá”. “Capiá” é um capim alto que dá como semente umas contas azulegas, muito lustrosas, com as quais nossos avós, na roça ou nas cidades, faziam seus rosários.  Segundo Monteiro Lobato, essas contas, que em nossa região são conhecidas como “contas de lágrimas”, “parecem que nascem para isso, pois apresentam um furinho dum estremo a outro, muito próprio para receber o fio de linha”. Em um dos versos do poema tema do livro diz com o seguinte encanto:

“(…)

É só a gente passá

um fío de linha no meio,

pra móde infiá as contínhas,

cúm geito, pra não errá…

 

Quando o fío tivé bem cheio,

cô’as cônta tudo juntínha,

tambem tá prontínho e feito

bonitinho e por iguá,

um rosarinho prefêito

de conta de capiá…”

 Mas além destas curiosidades, e, para provocar o seu desejo de conhecer esta riqueza da literatura coloquial, vou descrever mais alguns versos para o meu e o seu deleite.

        Ribeirãozinho

Aquéla cabôca ladina e facêra

que um dia, na istrada,

parô na portêra,

me oiándo incantada,

gastando de mim;

Aquéla cabôca que eu sendo tão feio

Me achava bonito, vestindo um parêio

De rôpa de brim…

 

Aquéla cabôca que espía o que faço…

(…)

Aquéla cabôca que insína eu cantá…

(…)

Aquéla cabôca que sempre me espía

falô que eu devía

oiá o ribeirão,

ponhando tenção

no que as aguas fala depréssa, correndo,

e no jeito délas, pra quem fica vendo,

quando tão parada,

dormindo, impoçáda,

sonha e falando,

um mundão de coisa, decerto alembrando,

que nem gente véia que tá resmungando…

(…)”

e assim continua seus versos e encantamentos que somente poderemos compreender quando percorrer os olhos pelas 200 páginas de puro sentimento e realismo.

Assim, entre a língua culta e a linguagem coloquial, fonética, ou como diz Monteiro Lobato a “língua do Jeca”, não há uma contradição semântica ou erro, há um universo a ser explorado e apreciado, principalmente no que diz respeito à evasão do sentimento, da forma e do encantamento poético.

Para quem sentir-se interessado em encantar-se e aprender com a obra aqui apresentada procure por “Rosário de Capiá – Poemas cablocos” de José Bento de Oliveira (Nhô Bento), editora Graphicars F. Lanzara, São Paulo, 1946. Procure em um sebo e por sorte irá encontrar algum exemplar. Eu tenho o meu.