segunda-feira, 19 de novembro de 2012


"ALÉM DOS TRILHOS"

Um mergulho na alma cultural de uma criança (e família) marcada pela chegada e pela partida dos trens de ferro. Este é o resultado da obra "Além dos trilhos" de Maria Lúcia Mendes neste leitor.

“Dentro de mim não mais ansiedade e sim quietude, reflexão: as coisas que amamos não envelhecem, assim pensando agachei-me, juntei um punhadinho de terra, esfreguei-o devagar entre os dedos e pequei o caminho de volta.
Quem nasce à beira da linha aprende cedo que chegadas e partidas são do comando de Deus, mas a viagem vida afora cabe ao destino de cada um. Seja outono ou inverno – não importa a estação – guardará consigo o desejo de decifrar segredos que se escondem em paisagens perdidas no ir e vir da memória” (pág. 10)
Iniciar um artigo com uma epigrafe, embora não sei se é ou não conveniente, mas isso é mais que uma questão de forma, de estilo, é uma questão de sentimento. Escolhi assim porque o texto da epígrafe se apresentou para mim como uma chave de leitura. Uma chave de leitura, porque “os segredos das paisagens do ir e vir da memória” perpassa toda a obra “Além dos trilhos”, ultrapassando os limites da realidade de uma história vivida por duas irmãs em uma cidade interiorana denominada de Cristais, mas que também pode ser qualquer cidade do interior das Minas Gerais marcadas pelo trem de ferro, pelo comércio de secos e molhados, pelos relacionamentos intensos com os vizinhos e, sobretudo, de como os problemas familiares dos adultos são percebidos e vivenciados pelas crianças.
Ao desvendar estes “segredos... no ir e vir da memória” há o encontro com a minha própria infância, que de alguma forma faz parte de uma mesma tradição e de uma mesma paisagem, a “infância comum” de muitos mineiros. Este lugar comum, esta paisagem comum, reforçam os laços da tradição e da cultura mineira o que torna este romance íntimo e aconchegante. Assim podemos “pegar o caminho de volta” e com o cheiro da terra, depois de “esfregados entre os dedos”, podemos também escrever nossas histórias, nossas memórias; isso porque “as coisas que amamos não envelhecem”.
Os apelos comerciais e o desejo de progresso destroem os antigos casarões, nossos cenários de infância; as antigas vendas ou mercearias vão sendo engolidos pelos supermercados e hipermercados cada vez mais frios e sem histórias. O tempo é cada vez mais corrido, não temos mais tempo de visitar os amigos, de um dedo de proza, de uma futrica, de um bate papo descontraído na venda da esquina – não há mais venda, não há mais esquina, – como não há mais rua onde se pode brincar, não há mais casas com alpendre para ver a vida passar...
Não se trata de mero saudosismo, trata-se de um outro tempo, de uma outra paisagem, de uma outra realidade e, o que nos resta, são apenas memórias que nos traz este passado e, pouco a pouco, “no ir e vir da memória” dá um novo sentido ao presente, compreendendo suas mudanças e ao mesmo tempo, atribuindo-lhe novo significado. É a partir destas memórias que os segredos são compreendidos e interpretados, e se configuram em novas paisagens, que com o tempo também deixarão de existir.
Assim as crianças de amanhã dificilmente entenderá como era a vida das crianças de hoje, se alguém não lhes escrever e falar. As crianças de hoje terão a oportunidade de compreender a infância de seus pais e avós ao lerem os exercícios da memória publicados por Maria Lúcia Mendes em “Além dos trilhos”, no último dia 09 de novembro. A maturidade desta memória está assegurada quando percebemos que somente aquilo que amamos é que não envelhece, é que se eterniza, é que se perpetua e se transforma em tradição, em cultura, em patrimônio cultural.
Além dos trilhos haverá sempre algo a mais a nos dizer... haverá ainda outros trilhos... e trilhos que se cruzam, que se interpõem e se entrelaçam... mas mais que trilhos... vida em sua eterna viagem.

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