sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

E A LEITURA DE ÚRSULA?

Geraldo Phonteboa

Então, lestes Úrsula?! É um romance ou um drama? Embora a história seja um romance, a história do amor de Tancredo e Úrsula e que, provoca em Fernando P., os mais cruéis sentimentos e ações.

Mas a história é dramática. Costurada de descrita de uma forma tão intensa que o leitor vai sendo levado pelo sentimento de ódio e rancor, e por fim lamenta pelo final escolhido pela autora. E como as coisas terminam sou levado a pensar no Drama como estilo. Convenhamos, é um verdadeiro drama de Úrsula – “pobre Úrsula”.

A história principal é a história deste amor. Do amor de uma donzela, branca, que vivi como “objeto” do amor de dois homens brancos, senhores de escravos e pertencente a elite do Maranhão. Este é a história que conduz toda a obra de Maria Firmina dos Reis.

No entanto, há mais duas histórias que se fazem presente nesta história dramática que a torna ainda mais dramática: a história de homens e mulheres escravizados e a história das mulheres colocadas como “objetos” das vontades dos homens.

A obra de Maria Firmina dos Reis é mais que uma denúncia da existência desses dois dramas, é sim um posicionamento consciente, decisivo e decisivo.  Existem algumas passagens em que estes dois outros dramas são claramente tematizados.

Quanto a infame existência da escravidão, a autora, diz

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. (pág. 21)

Aqui a autora busca o próprio evangelho ou princípio religioso para interpelar pela crueldade da escravidão, incompreensível racionalmente, mas que acaba por embrutecer a alma, não só dos negros, mas também dos brancos.

Em outra passagem quando Túlio é interpelado para revelar seu nome e condição ao desconhecido Tancredo, ele assim afirma:

— A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distância que nos separa? Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que... (p.24)

E aqui, a autora ainda chama nossa atenção para o próprio posicionamento de Túlio, que não se vê na condição de ser digno de ser chamado de amigo, por ele ser escravo. Ou seja, a situação de escravidão impossibilita-se de qualquer aproximação de indivíduos que ocupam papéis sociais distantes e distantes.

E por fim, neste drama da escravidão presente na obra “Úrsula”, destaco mais uma passagem que ocupa um papel de denúncia ao drama da escravidão. Assim diz a autora:

Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: — És meu! – Ele curvou a fronte, e humilde, rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E, entretanto, este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente, como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar! (p.34)

 Aqui vem a questão: quem deu ao branco do direito de escravizar o negro? E a escravidão o que é? A cadeia infame e rigorosa. E este posicionamento da autora se faz presente ao longo de todo romance/drama de Úrsula. Está presente no tratamento dado pelo comendador Fernando P. aos seus escravos, ou ainda na história e trajetória de “Suzana”.

Agora vamos ao outro drama. O drama vivido pelas mulheres, brancas ou não, que são consideradas “objetos” dos desejos e das vontades dos homens. Tendo inclusive seus destinos definidos por eles. A tal ponto que elas são incapazes de se libertar. Em várias passagens as vontades das mulheres são dominadas pelas forças, pelo desejo e pelo tratamento dispensado pelos homens. E mesmo quando estes homens manifestam seu amor por uma mulher o fazem como uma forma de justificativa de seu domínio sobre elas. Mas como citei algumas passagens no caso do drama da escravidão, devo fazer o mesmo aqui.

A primeira formada de sexismo, apontado pela autora, está na própria cultura masculina daquela sociedade, em que o homem tem a capacidade de colocar as mulheres em situação de completa exposição social. Diz assim a autora:

Oh! O sol é como o homem maligno e perverso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! E depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima! A donzela e a flor choram em silêncio, e o seu choro ninguém compreende! (pág.19-20).

Já em outra passagem é apresentada uma segunda forma de sexismo, ainda tão presente atualmente, que é a figura paterna e seu tirocínio sobre sua esposa e sua prole. Assim diz a autora:

É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura.

Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher.

Quantas vezes na infância, malgrado meu, testemunhei cenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que revoltavam! E meu coração alvoroçava-se nessas ocasiões, apesar das prudentes admoestações de minha pobre mãe. (p.43)

A grandiosidade desta obra é muito atual e merece ser lida e levada aos alunos do ensino fundamental e médio. Não por ser uma história escrita por uma mulher negra, mas por ser uma obra que tece as teias de nossa identidade. Por este motivo convido você leitor a ler também “Gupeva” e poemas desta grande escritora: Maria Firmina dos Reis.

E para terminar, deixo aqui uma estrofe do poema “Súplica” desta grande autora:

Dá, Senhor, que breve passe

Sobre a terra – o meu viver;

Bem vês, a flor desfalece

Da tarde no esmorecer;

Entretanto a flor é bela,

É bela de enlouquecer. [...]

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário