Esta semana
recebi, cinco vezes, através das redes sociais, um texto do caderno “Opinião”
do jornal El País, produzido pela
escritora, repórter e documentarista Eliane Brum. O texto, cujo título é “Parabéns, atingimos a burrice máxima”,
apresenta duras críticas às autoridades (promotores de justiça, vereadores e
deputados) que repudiaram publicamente a escritora e filósofa francesa Simone
de Beauvoir, utilizando para isso os próprios cargos que ocupam. Todos estes
ataques deferido contra, a já falecida, Simone de Beauvoir foi motivado por um
verbete retirado de seu livro, O Segundo
Sexo, e que apareceu na edição do último ENEM.
O verbete, “Uma mulher não nasce mulher, torna-se
mulher”, acendeu a ira de determinado grupo de brasileiros que se encontram
em “pé de guerra” contra a chamada “ideologia de gênero”. Numa situação como
esta qualquer coisa que é dita e que insinua uma aparente posição contrária,
tanto de um lado como do outro, é suficiente para, segundo a autora da coluna “Opinião”
de El Pais “os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância”.
Como se não bastasse a crise econômica, a crise moral e política pelo qual
estamos atravessando, temos ainda que conviver e nos envergonhar com tamanha
falta de cultura e despreparo de nossas autoridades.
Todos nós
sabemos que uma frase ou verbete, seja de um texto científico, de uma crônica,
de uma poesia, ou até mesmo da Bíblia, quando colocada em separado, fora de seu
contexto, é extremamente perigoso e controverso. Todos nós sabemos que isso
ocorre constantemente e é prática corriqueira em cultos religiosos, em
palestras motivacionais e tantas outras oportunidades... Já estamos acostumados
em ouvir aulas e palestras, discursos e sermões que tão somente tematizam
frases soltas. Tão mais perigoso é subtrair verbetes de uma obra filosófica,
cujo tema está na base de um determinado pensamento sistêmico ou de uma teoria
filosófica. No caso específico da obra “O
Segundo Sexo” cuja reflexão filosófica é a valorização da mulher, do
feminino, diante de uma sociedade machista da década de 1950, subtrair desta
obra e deste contexto e dizê-la em um contexto onde os direitos dos homossexuais,
lésbicas e transexuais estão na pauta do dia, não é só descontextualizar o
verbete, mas é incitar e provocar reações adversas, ainda mais em um sociedade
onde o acesso à leitura e a uma educação de qualidade é, nas palavras de Eliane
Brum, uma “flatulência”, torna-se potencialmente explosiva.
Assim, a
reação das autoridades despreparadas – que não possuem projetos políticos
sérios, vazias de conteúdo, de conhecimento, que não tem o hábito de leitura e
reflexão –, tendem a se revelarem com muita facilidade. Provavelmente pouquíssimos desses “doutores”
ou “Vossas Excelências” (como gostam de se autodeterminarem – todas “autoridades”
constituídas) jamais tenha lido por inteiro a obra onde se encontra tal
verbete. Disso o que se pode esperar é uma avalanche de opiniões sem
fundamentos e de pré-julgamentos que, além de condenar injustamente qualquer
escritor/autor sem o direito de se defender, demonstra uma total ignorância
referente a determinados assuntos. E o resultado é a criação de uma situação caótica
e deplorável, carregada de xenofobismo e preconceitos, que no caso da produção
literária, científica e filosófica distorce, por completo, o sentido e
contribui para o ostracismo teórico, eliminando o debate, o desenvolvimento
intelectual e cultural.
Em outras
palavras, diante desta ignorância oficial a gente fica sem palavras. Por isso
reescrevo aqui uma das questões levantados por Elaine Brum em seu texto e que é
de fundamental importância:
“Como dimensionar a gravidade de um vereador
eleito, pago com dinheiro público para legislar e, portanto, para decidir
destinos coletivos, dizer que a escolha da frase de Simone de Beauvoir para uma
prova do ENEM é algo “demoníaco”, como afirmou Campos Filho (DEM)? E como
enfrentá-la com a seriedade necessária?”
Não saber como
enfrentar esta situação já é, em si, uma posição ruim, mas não possuir um sistema
educacional que permita uma mudança de mentalidade a médio prazo é ainda pior.
E então, a real constatação da autora ao afirmar que “Os burros estão por toda parte e muitos deles estudaram nas melhores
escolas e, o pior, muitos ensinam nas melhores escolas” torna a situação
sistêmica e preocupante: é a institucionalização da ignorância. Parece-me
que estamos sem saída. Estamos imersos em uma realidade em que o que é errado é
valor; que ser esperto é sinônimo de habilidade moral e intelectual e que o
“jeitinho” é virtude. Diante deste “mar de lama” (não aquela que saiu de uma
barragem de irresponsáveis, mas aquelas que saem de nossas câmara, assembleias,
congresso, palácios e tribunais) é que conduz o nosso futuro cada vez mais
sombrio.
Rever todos
os debates filosóficos, textos e mais textos estudados por longos anos... e,
então, reorganizar ideias, na medida do razoável, para nos reposicionar
diante destas intolerâncias e ignorâncias; é um exercício que me convém e a
única coisa que parece-me possível e o mais certo a se fazer. Tal prática exige
tempo, e, enquanto isso, nossas “autoridades” despreparadas e carentes de
ideias e projetos, continuarão a abrir suas latrinas, provocando
constrangimentos e nos envergonhando enquanto nação.
O que nos resta é o pensamento; pensar é a única
forma de enfrentar a burrice instituída e instalada em nosso país.
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