Entre a língua culta e a linguagem
coloquial: beleza e encantamento poético.
Geraldo Fonte Boa
No
ano de 1946 publicou-se o livro “Rosário de Capiá – Poemas Cablocos” do poeta e declamador José Bento de Oliveira,
conhecido por “Nhô Bento”. Os temas são de uma simplicidade encantadora, o
ritmo envolvente e as poesias lindas. Plena de simplicidade e de encantamento. O
livro de poesia foi prefaciado por nada menos que Monteiro Lobato.
Os
poemas, lidos hoje, são um convite ao mergulho em nossa cultura popular sem, no
entanto, deixar de ser um aprofundamento na literatura, visto que a forma
utilizada pelo autor exige do leitor o esforço de compreender como a língua expressa
que constrói a si mesma. Parece contraditório, pois os poemas utilizam-se da
fonética e linguagem coloquial para se expressar, mas o que eles ensinam é a
linguagem culta, a forma como esta linguagem vai, paulatinamente, se
constituindo e se transformando.
O
próprio Monteiro Lobato diz em seu prefácio: “A evolução da língua é curiosíssima e inteligentíssima, como todas as
evoluções não atrapalhadas pelos breques dos artificialismos. A forma escrita
das línguas é um artificialismo tremendamente embaraçador da evolução natural
das línguas.(…) E acentuaria que o mesmo direito que tiveram os portugueses de
corromper do latim e transforma-lo em língua portuguesa, temos nós letrados, de
corromper a língua portuguesa e transforma-la na “língua brasileira”;(…)” .
Assim sendo, penso que a linguagem fonética e, porque não, coloquial utilizada
nos poemas de José Bento de Oliveira revela um certo fenômeno natural comum no
dia a dia do uso da língua. Este fenômeno natural é, no entanto, o motor do
desenvolvimento da língua, em que o coloquial vai sendo apropriado e
incorporado pela linguagem culta, dando a ela uma nova roupagem, novos
significados. Não teria sido isso que ocorrera com a língua Tupi, quando o Pe.
José Anchieta buscou codificar por escrito tal língua?!
Mas
voltemos ao livro “Rosário de Capiá”. Provavelmente você não deve saber do que
se trata “Capiá”. “Capiá” é um capim alto que dá como semente umas contas
azulegas, muito lustrosas, com as quais nossos avós, na roça ou nas cidades,
faziam seus rosários. Segundo Monteiro
Lobato, essas contas, que em nossa região são conhecidas como “contas de
lágrimas”, “parecem que nascem para isso,
pois apresentam um furinho dum estremo a outro, muito próprio para receber o
fio de linha”. Em um dos versos do poema tema do livro diz com o seguinte
encanto:
“(…)
É só a gente passá
um fío de linha no meio,
pra móde infiá as contínhas,
cúm geito, pra não errá…
Quando o fío tivé bem cheio,
cô’as cônta tudo juntínha,
tambem tá prontínho e feito
bonitinho e por iguá,
um rosarinho prefêito
de conta de capiá…”
Mas além destas curiosidades, e, para provocar
o seu desejo de conhecer esta riqueza da literatura coloquial, vou descrever
mais alguns versos para o meu e o seu deleite.
“Ribeirãozinho
Aquéla cabôca ladina e facêra
que um dia, na istrada,
parô na portêra,
me oiándo incantada,
gastando de mim;
Aquéla cabôca que eu sendo tão feio
Me achava bonito, vestindo um parêio
De rôpa de brim…
Aquéla cabôca que espía o que faço…
(…)
Aquéla cabôca que insína eu cantá…
(…)
Aquéla cabôca que sempre me espía
falô que eu devía
oiá o ribeirão,
ponhando tenção
no que as aguas fala depréssa,
correndo,
e no jeito délas, pra quem fica vendo,
quando tão parada,
dormindo, impoçáda,
sonha e falando,
um mundão de coisa, decerto
alembrando,
que nem gente véia que tá resmungando…
(…)”
e
assim continua seus versos e encantamentos que somente poderemos compreender quando
percorrer os olhos pelas 200 páginas de puro sentimento e realismo.
Assim,
entre a língua culta e a linguagem coloquial, fonética, ou como diz Monteiro
Lobato a “língua do Jeca”, não há uma contradição semântica ou erro, há um
universo a ser explorado e apreciado, principalmente no que diz respeito à
evasão do sentimento, da forma e do encantamento poético.
Para
quem sentir-se interessado em encantar-se e aprender com a obra aqui
apresentada procure por “Rosário de Capiá – Poemas cablocos” de José Bento de
Oliveira (Nhô Bento), editora Graphicars F. Lanzara, São Paulo, 1946. Procure
em um sebo e por sorte irá encontrar algum exemplar. Eu tenho o meu.
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