IFIGÊNIA
Geraldo Fonte Boa
Considerações iniciais
O ritual que irei descrever neste texto foi resultado de minha
observação atenta realizado quando do "descoroamento" da Rainha Perpétua de Santa Ifigênia Dona Sãozinha, de Itaúna, MG. Por ser resultado de minha observação, pode haver alguma discrepância devia a percepção
de alguém de fora do movimento do Reinado, ou do Congado. Isso porque o Congado a gente aprende e apreende a partir da convivência e da participação de seus festejos. E mesmo acompanhando o Congado de Itaúna, que aqui é chamado de Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, foi a primeira vez que tive a
oportunidade de acompanhar este ritual. Se a descrição que faço aqui, tiver algum elemento que não corresponda a verdade dos fatos, peço que anote e que me comunique para que eu possa corrigir e também aprender. Mas tenha a certeza que o que descrevo aqui é o melhor que pude fazer para ser fiel ao ritual e respeitoso ao povo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e aos parentes e amigos da família de D. Maria da Conceição de Jesus, D. Sãozinha.
Contexto
Tem rituais que a gente só tem a oportunidade de ver uma
única vez, ou pouquíssimas vezes na vida. Embora tenha pessoas que, em toda sua
existência, não tiveram e não terão a oportunidade de conhecer alguns rituais, diferentes,
significativos e muito bonitos. E o ritual de "descoroamento" de uma rainha, em seu leito de morte, é um desses rituais. Único em sua forma, simples em seus gestos, mas pleno de símbolos e de
significados. Este ritual ocorreu durante o velório de uma Rainha do Congado, ou como é chamado
aqui em minha cidade, uma Rainha Perpétua do Reinado. Pois bem. D. Maria da Conceição de
Jesus, com 98 anos de idade faleceu. Ela era Rainha Perpétua de Santa
Ifigênia e por muitos anos comandou a festa do Reinado em nossa cidade. Sua
residência era a sede de três ternos ou “guardas” de congado: uma guarda de Congo, um Candombe e uma guarda de Vilão. Sua casa simples era um
“quartel” do Reinado e ela, como Rainha Perpétua era quem comandava a
festa. Em todo dia 01 de agosto era sua obrigação levantar a Bandeira de Santa
Ifigênia em seu terreiro, e dar o aviso que aquele ano teria festa. E a
festa se estendia por 15 dias consecutivos, como muita dança, comida,
bandeiras, foguetes, muita música e dança aos sons dos tambores, caixas,
reco-recos, gungas e patangomes. Uma expressão firme de força e de fé.
Pois bem, como todo ciclo de vida acaba, a Rainha D. Sãozinha também chegou ao fim de
sua trajetória. Faleceu. Então fomos ao velório. Para começar, não foi um
velório comum. Foi o velório digno de uma Rainha. Cada capitão de guarda que
chegasse ao velório fazia sua saudação a rainha falecida com muita oração e
muita cantiga. As caixas silenciaram, os reco-recos, os tambores, não tocaram
naquele dia. O povo, visivelmente abalado e condoído pela preciosa perda, traziam em
seus cânticos a dor e a certeza de que a Rainha já estava no céu com Senhora do Rosário.
O ritual
Passou-se as horas e aproximadamente duas horas antes do sepultamento, o
capitão-mor, acompanhado por mais dois capitães da irmandade das Sete Guardas, da qual pertencia
aquela Rainha, começam os preparativos para o “descoroamento” da Rainha
falecida. Coloca-se um pouco acima da cabeça da falecida a sua coroa, sobre seu
corpo estende o manto e sobre suas mãos o cetro, com a insígnia de
Rainha. Então todos se aproximam. Os capitães de Guarda presentes, ficam de um
lado e do outro, e nos pés do caixão ficam as mulheres filhas e netas
da Rainha ali presentes.
O Capitão-mor, Senhor Mário, no exercício de sua função, preside a cerimônia e inicia o rito de “descoroamento”. Reza em voz baixa,
praticamente inaudível. Esta forma de rezar parecia ser proposital, pois
somente os capitães que lhe estavam mais próximos dele poderiam ouvir as
palavras de suas orações. Depois puxava um canto, e todos repetiam cantando as
palavras puxadas pelo Capitão-mor. O canto tinha a seguinte letra:
“Virgem
do Rosário
Ela
é a nossa mãe
Clamamos
por ela
Em
nossas orações”
Ao terminar o canto por parte da assembleia, o capitão-mor voltava
a fazer sua oração e puxava o canto novamente. Este pequeno ritual
introdutório se repetiu por sete vezes. Ao final das sete vezes, o capitão-mor
dava o “Viva a Nossa Senhora do Rosário”, o “Viva o Rosário de Maria” e o povo respondia, com voz embargada: "Viva!!!".
Em seguida, desta vez acompanhado por um tambor, com toque compassada e fúnebre, puxava um novo canto, com um verso simples, que dizia assim:
“Virgem
Maria, Mãe do Céu
Esta
Rainha está lá no céu,
Pois
a Glória seja ao Pai
Oh!
Lá no céu, oh! Pai Eterno”
Após ser cantado duas vezes pelo capitão-mor e repetido duas
vezes pela assembleia se repetia este mesmo canto por três vezes.
Ao término desta segunda parte, o capitão-mor puxou novo
canto, dando início ao ritual de “descoroamento” propriamente dito.
E o canto era:
Descoroai,
Descoroai, Senhora
Descoroai,
essa nossa Rainha
Esta
coroa é sagrada
Esta
coroa é divina.
O que era repetido pela assembleia em resposta ao canto do capitão-mor. E o mesmo se repetia por três vezes.
Em seguida, o capitão-mor, com a ajuda de outro capitão,
com seus bastões, erguia a coroa, sem nela se tocar, usando somente os bastões,
cantavam:
“Entregai,
Senhora
Entregai,
Senhora
Estregai
esta coroa
Ela
é de Nossa Senhora”
E repetia mais também por três vezes, sempre com a resposta
do canto pela assembleia. Enquanto se cantava a coroa erguida pelos bastões do
capitão percorria todo o corpo até chegar aos seus pés e era entregue
pelos bastões as filhas e netas da Rainha falecida.
Este mesmo ritual se dava para o manto. E acompanhado do canto se erguia o manto, com a ajuda dos bastões dos demais capitães presentes,
sempre tendo o cuidado de não se tocar com as mãos o objeto erguido da rainha. E assim conduzia o manto por toda a extensão de seu corpo até seus pés onde fazia a
entrega do mesmo as filhas e netas da Rainha falecida.
Para a retirada do manto se cantava e era repetido pela
assembleia o seguinte canto:
Entregai,
Senhora
Entregai,
Senhora
Entregai
este manto
Ele
é de Nossa Senhora.
O mesmo acontecia com o cetro da rainha, que era
acompanhado do mesmo canto com a seguinte letra:
Entregai,
Senhora
Entregai,
Senhora
Entregai
esta insígnia
Ele
é de Nossa Senhora.
Ao terminar o ritual, o capitão-mor puxava então o canto de
encerramento, também por três vezes repetido, com os seguintes dizeres:
Descoroou,
Descoroou, Senhora
Descoroou
esta nossa Rainha
Ela
foi descoroada com a coroa Divina
E o capitão-mor deu viva a nossa Senhora do Rosário e ao
Rosário de Maria. E assim termina o Ritual de Descoroamento.
Desfecho
Mas o velório segue, nem os capitães nem a assembleia se
mexe. Cada capitão presente puxa um canto em honra a rainha descoroada,
destacando sua missão cumprida e seus ensinamentos, bem como a louvores a Nossa
Senhora do Rosário. E cada canto era acompanhado e respondido pela assembleia presente. E assim se repeti por dez a quinze minutos. E finalizando o velório seguiu ao
cortejo até a capela do Rosário e, de lá ao cemitério central. Tanto na
capela do Rosário, quanto no Cemitério, a assembleia pode se manifestar
engrandecendo a missão de D. Sãozinha, e sempre com mais cânticos e mais louvores tanto a Rainha descoroada, quanto a Nossa Senhora do Rosário.
D. Sãozinha cumpriu sua missão e deixou a coroa para suas
filhas e netas que deverão decidir qual delas será coroada como Rainha Perpétua
de Santa Ifigênia e se responsabilizará para dar continuidade a Festa do Reinado, a Festa do Reinado de Nossa
Senhora do Rosário.
E para encerrar é preciso destacar uma particularidade de nossa cidade. No alto do morro, se ergue duas capelas: a capela oficial de Nossa Senhora do Rosário e a Capela das Sete Guardas. Esta Capela das Sete Guardas foi construídas à revelia da Igreja Católica, quando o Bispo D. Cabral, na década de 1940, resolveu proibir a entrada dos congadeiros em suas Capelas do Rosário com seus tambores, danças e cânticos. Então, com a participação de D. Sãozinha, parte dos congadeiros deixaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e criaram a Irmandade das Sete Guardas e construíram uma capela para dar sequência á sua devoção a Nossa Senhora do Rosário. Vale ressaltar que a capela de Nossa Senhora do Rosário - a oficial - permaneceu fechada durante o cortejo da Rainha e ela recebeu na Capela de Nossa Senhora do Rosário - a não oficial - as últimas homenagens antes de ser conduzida ao cemitério central. Mas nem por isso tirou o brilho e a dignidade
deste povo que celebrou com a vida sua devoção a Nossa Senhora do Rosário.
Viva, Nossa Senhora do Rosário! Viva!
Viva, o Rosário de Maria! Viva!