domingo, 29 de junho de 2025

A importância de Nossa História Regional

 O estudo da História Regional é um grande desafio. Primeiro é porque os grandes institutos de pesquisa, cursos de Formação de História, ou ainda formação de Pesquisadores Sociais, não se preocupam com aspectos específicos da história local. Geralmente estes grupos ou instituições querem compreender os aspectos "macros" dos acontecimentos históricos. Aqueles aspectos que são explicadores gerais, que de certa forma consegue explicar determinadas tendências ou escolhas históricas que afetaram a nossa trajetória histórica. Assim estudamos história geral, ou história nacional (História do Brasil) e dentro deste campo estudamos determinados seguimentos como religião, economia, relações sociais, aspectos políticos, etc. Quase sempre estes seguimentos trazem contribuições no sentido de compreender os acontecimentos, ou tendências gerais da história nacional. E, por isso, quase sempre não temos obras de pesquisadores sobre a história regional, ou a história de uma cidade.

Outro ponto importante é o fato de uma documentação minimamente organizada para que se possa realizar uma pesquisa que consiga informações suficientes para se construir uma história que realmente faça sentido. Os órgãos públicos (fórum, cartórios, Igrejas, Prefeituras, Câmaras de vereadores e instituições culturais) possuem um acervo documental minimamente organizado e disponíveis para a realização de uma pesquisa. E quase sempre a documentação destas instituições públicas ou privadas tem a necessidade de serem confrontadas com informações de particulares, o que torna ainda mais difícil a pesquisa. É muito comum, assim que uma pessoa falece, descartar todo o material referente a sua existência. E com isso muitas informações úteis para a construção de uma narrativa história é perdida em definitivo, cabendo ao historiador se basear unicamente em depoimentos orais de pessoas que viveram um determinado acontecimento ou momento. Isso requer tempo, investimento, recursos técnicos e domínio de conhecimentos metodológicos para se construir uma história minimamente confiável e que dialogue com a realidade local ou ainda regional. 

É diante desta realidade que a organização de um acervo documental em cada cidade de uma determinada região torna-se fundamental e muito importante. Nesse sentido, o que o "Projeto Mesopotâmia Mineira" realizou em Pará de Minas, entre os anos de 2001 e 2006, ganha importância. Este projeto, desenvolvido na época pelo curso de História da Faculdade de Pará de Minas - FAPAM, sob minha coordenação, contou com a participação de 20 alunos. E nos seis (6) anos de muito trabalho, com participação parcial de alguns alunos, mas com dedicação de um núcleo de estudantes e professores, foi possível organizar o Acervo de Documentos cartoriais que hoje se encontra disponível para a pesquisa no Museu Histórico de Pará de Minas. 

Trata-se de um acervo de documentos cartoriais compostos de Inventários, divisão de bens, processos crime, divisão de terras, ações de liberdade, ações sumárias, e outros tipos de documentos, em sua maioria manuscritos. Este acervo abrange o período da segunda metade do século XIX (1850...) e primeira metade do século XX (anteriores a 1950), que estão a espera de olhares curiosos que possam buscar informações e construir uma história que nos ajude a compreender o desenvolvimento econômico, social, político e cultural desta região. 

Para exemplificar a riqueza deste acervo, segue abaixo um podcast sobre um dos documentos deste acervo. Trata-se de uma Ação de Liberdade datada de 1886. Ouça o Podcast e visite o acervo do Museu de Pará de Minas. Conheça esta história! Vale a pena.



domingo, 11 de maio de 2025

Vejo e Enxergo

Mesmo que eu ponha os olhos sobre as coisas
Meus olhos veem, mas nem sempre enxerga.
Quase sempre meus olhos ficam nas aparências
E só com muita insistência se consegue enxergar.

Nem céu, nem mar, mar e céu no mesmo lugar
Nem água, nem fogo, transformação para todo lugar
Nem terra, nem ar, apenas vida a brotar.
O mundo assim a criar.

Quando versos escrevo, quando não posso falar
Vejo a história que nasce e se funde 
Com água, fogo, terra e ar, nesse palavrear.


segunda-feira, 28 de abril de 2025

“Devagar com o andor, que o santo é de barro!”

 

Geraldo Fonte Boa


Sou professor da Rede Pública Municipal, e também da Rede Privada de ensino, e como professor, conhecedor de meu público, e por respeitá-lo, é que me senti na obrigação de manifestar. Sei que meu posicionamento pode não agradar a muitos, mas coloco-me disposto a ouvir. Mas discordar respeitosamente é próprio dos regimes democráticos. Chegou ao meu conhecimento a tramitação de um projeto lei de número 45, de 2025, assinado por três vereadores do município, onde propõem “o uso da leitura bíblica como ferramenta paradidática em escolas públicas e privadas do Município de Itaúna, MG”. Não declinarei os nomes dos referidos vereadores em respeito a eles, até porque os conheço, e sei que suas intenções podem ser boas, mas a proposta não é cabível.

Nada contra a leitura da bíblia, seja em qual lugar seja, mas uso dos textos bíblicos – apesar de sua riqueza histórica e cultural – como “ferramenta paradidática em escola públicas e privadas” aí ultrapassa os limites do uso didático e pedagógico e pode se transformar em um mecanismo de propagação de uma visão religiosa, ou mesmo se instrumento de exclusão e de menosprezo para crianças e adolescentes que serão excluídas do processo pedagógico e educacional.

Pelo que sabemos o Estado é laico, e o Brasil não é constituído somente de cristãos. Residem em nossos municípios pessoas que não tem no cristianismo sua profissão de fé, então querer propor a leitura bíblica nas escolas é uma falta de respeito para com o público que não é cristão. Portanto o Estado deve garantir que todos tenham liberdade de manifestar suas crenças e não deve interferir nesta questão. Não cabe a ele propor nenhum tipo de orientação que beneficie determinado grupo religioso. E no caso aqui analisado, mesmo que nenhum aluno seja obrigado a participar das atividades prevista nesta lei, como está descrito no artigo 2º da proposta, é por si mesmo uma atitude de exclusão de uma minoria. Além disso, a utilização de fragmentos de um determinado artigo da constituição e não de sua totalidade como fundamentação teórica fere o princípio constitucional. O inciso VI, do artigo 5º da Constituição Federal diz claramente “VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Não caberia aqui dizer que ao propor a leitura bíblica nas escolas, não estaria violando a liberdade de manifestação religiosas dos grupos que não são cristãos? Não estaria abrindo a possibilidade de transformar as escolas em locais de culto? E o que fazer com os alunos que não se identificam com o cristianismo, serão excluídas do processo pedagógico?

Além disso, vale ressaltar que a própria Constituição Federal já é muito clara quanto ao estabelecimento dos conteúdos a serem trabalhados na rede pública e privada de ensino, e no tocante ao ensino religioso, diz o Art. 210. “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.” E em seu parágrafo primeiro diz: “§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.” Por este motivo a aprovação desta lei passa a conflitar com o princípio facultativo da matrícula no ensino religioso” uma vez que está propondo a utilização de um texto bíblico que é a base de um determinado grupo ou segmento religioso em meio a tantos outros.

Mas caberia aqui algumas questões não menos importante: qual versão bíblica será utilizada, visto que temos inúmeras denominações cristãs com bíblias diferentes? E o que será ofertado para as crianças e adolescentes ou estudante que não professam determinada orientação religiosa? Serão abertos também às religiões de matriz africana, ou indígena, ou mesmo oriental e islâmicas em utilizarem de seus ritos, leitura, textos sagrados dentro das unidades escolares públicas e privadas? Os vereadores que estão propondo esta “inovação” conversaram com os pais dos alunos que se identificam com religiões não cristãs? Conhecem a realidade escolar da cidade e garantem que não haverá doutrinação religiosa nas unidades escolares?

Não nego que as histórias bíblicas podem ajudar a refletir sobre valores que transcendem nossas crenças religiosas, mas utilizá-las como “ferramenta paradidática” é uma maneira de dizer que tais valores presentes nas histórias bíblicas devem ser acolhidas e ensinadas como “verdades” em nossas escolas, e que os alunos de outras denominações religiosas serão privadas destas “verdades” e que as “verdades” de suas crenças não serão consideradas, nem respeitadas.

Por este motivo, prudência e respeito seriam bons princípios!  Respeito aos textos sagrados. Respeito às crenças dos outros! Respeito direito de inclusão apregoado pela constituição nacional! Respeito ao princípio da liberdade de crença e consciência conforme a integralidade de todo o inciso VI, do art. 5º da constituição federal, que deve garantir a todos os mesmos direitos de se manifestarem! E, finalmente, respeito a autonomia pedagógica escolar!

 E quanto à prudência, utilizarei de um dito popular muito útil neste momento: “devagar com o andor, que o santo é de barro”! 

sábado, 1 de março de 2025

Carnaval ou Carnavais?

Phonteboa


Os carnavais de outros tempos possuíam as marcas e os jeitos de seu próprio tempo. Como eu não sou mais das folias de momo de hoje, – embora  cheio de saudade dos blocos das décadas de 1980, trago na memória os blocos onde já brinquei meus carnavais: Os “Cuecões”, os “Castores”, o “Sai da reta”, a “Banda suja” e o tradicional “Pau de Gaiola” (que ainda hoje, faz a festa do Momo do povão itaunense), do “Bloco do Eu sozinho”, de Newton Regal...

Hoje tenho o meu samba marcado por outras cadências: a cadência de um pagode de saudosa memória. Assim como os primeiros trios-elétricos que disputou a atenção dos carnavais itaunenses, na década de 1990, como “All face” que, pouco a pouco, foi esvaziando as escolas de samba desta terrinha (o Zulu, o Império da Vila, a Unidos da Ponte...), outros grupos foram surgindo em cada carnaval, velhas guardas foram aparecendo nos carnavais itaunense, alguns apareciam em um ano, e depois sumiam nos intervalos de um ano para o outro. E assim o carnaval foi se reinventando...  E, como tudo na vida, ganhou novas configurações, novos centros de atenção, novos modos de se fazer e refazer...

E é neste “ritmo da saudade”, “neste pagode da memória” que trago para você, caro leitor, um relato trágico e de humor sofisticado de um escritor das antigas, Péricles Gomide Júnior, o nosso “Pancrácio Fidelis”. Sua crônica, publicada no ano de 1952, no jornal “Fôlha do Oeste”, revela características do carnaval daquele tempo. Claro que é apenas um relato, que deve ser sempre permeado pela crítica, pela ironia e pelo humor, próprio deste contador de histórias que foi “Pancrácio Fidelis”. Apreciem!   

O carnaval que passou

(“Fôlha do Oeste de 20-3-952)

O carnaval foi abafante, apesar do desânimo do povo, nas vésperas. Houve, na descrição do Orlando, muita animação, muta fantasia bonita, muito entusiasmo, muto pescoção, muto lança-perfume, muta pancadaria, muito confeti.

Gente boa, como o Chichico Saldanha e outros do mesmo time, passaram a noite na fila do Automóvel Clube, para assegurar as mesas para os festejos de Mômo.

O itaúnense é, indubitàvelmente, o único no gênero: passar a noite acordado, para garantir quatro noites sem dormir!

Houve alguns sururus, pescoçõezinhos meio avultados, o que não constituiu novidade, uma vez que nos anos anteriores, também o pau comeu.

Geralmente, em todas as outras cidades do Brasil, na quarta-feira de cinzas, os foliões dão o balanço: – “Perdi meu relógio”, – “Perdi minha abotoadura de ouro” – “Perdi minha carteira ...”

O balanço do itaúnense, como não podia deixar de ser, é inteiramente diferente: - “Perdi dois dentes. Um, eu sei que engoli, mas e o outro?” – “Entortei meu rôte...” – “deslocaram meu queixo...” – “Me acertaram todos os dois olhos...” etc. etc.

Ainda, no terceiro dia de carnaval, no Automóvel Clube, quando o tempo fechou, um senhor já entrado em anos, ao ver seu parente nas garras de outro, resolveu entrar na briga. Arregaçou as mangas, encheu o peito e entrou. Entrou de cara num punho fechado e retrocedeu cuspindo dentes, saliva, praga e nome feio. A turma do “deixa disso” arrelhou o bicho e o levou para baixo. Lá, o velhinho virou onça: – “ Me larguem! Isso não pode ficar assim! Preciso voltar lá em cima imediatamente! Me solta!” E fazia tremendos esforços para se desvencilhar.

– “O senhor já brigou muito hoje, chega. Não volta lá mais não; fique calmo, sossegue; o senhor não pode brigar mais!”

– “Eu não quero brigar mais não!” – berrou ele com toda a força dos seus pulmões – “Quero é ir buscar minha dentadura, antes que eles pisem nela!”.

 

GOMIDE JÚNIOR, Péricles. Crônicas e Narrativas de Pancrácio Fidelis. Gráfica Santa Maria: Belo Horizonte, 1961, p. 75-76.

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

SEMEADURA


Geraldo Phonteboa

Sobre um chão duro e seco

Como se feito de pura pedra

Nele lancei sementes.

Não criei expectativas,

Deixei sonhos correrem soltos

E segui caminho incerto.

 

Tempos depois de andanças

Naquele lugar não vi mais

Chão seco e duro...

Não reconheci as flores do lugar

Pensei em outra paragem.

Os sonhos não eram só meus.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

E A LEITURA DE ÚRSULA?

Geraldo Phonteboa

Então, lestes Úrsula?! É um romance ou um drama? Embora a história seja um romance, a história do amor de Tancredo e Úrsula e que, provoca em Fernando P., os mais cruéis sentimentos e ações.

Mas a história é dramática. Costurada de descrita de uma forma tão intensa que o leitor vai sendo levado pelo sentimento de ódio e rancor, e por fim lamenta pelo final escolhido pela autora. E como as coisas terminam sou levado a pensar no Drama como estilo. Convenhamos, é um verdadeiro drama de Úrsula – “pobre Úrsula”.

A história principal é a história deste amor. Do amor de uma donzela, branca, que vivi como “objeto” do amor de dois homens brancos, senhores de escravos e pertencente a elite do Maranhão. Este é a história que conduz toda a obra de Maria Firmina dos Reis.

No entanto, há mais duas histórias que se fazem presente nesta história dramática que a torna ainda mais dramática: a história de homens e mulheres escravizados e a história das mulheres colocadas como “objetos” das vontades dos homens.

A obra de Maria Firmina dos Reis é mais que uma denúncia da existência desses dois dramas, é sim um posicionamento consciente, decisivo e decisivo.  Existem algumas passagens em que estes dois outros dramas são claramente tematizados.

Quanto a infame existência da escravidão, a autora, diz

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. (pág. 21)

Aqui a autora busca o próprio evangelho ou princípio religioso para interpelar pela crueldade da escravidão, incompreensível racionalmente, mas que acaba por embrutecer a alma, não só dos negros, mas também dos brancos.

Em outra passagem quando Túlio é interpelado para revelar seu nome e condição ao desconhecido Tancredo, ele assim afirma:

— A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distância que nos separa? Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que... (p.24)

E aqui, a autora ainda chama nossa atenção para o próprio posicionamento de Túlio, que não se vê na condição de ser digno de ser chamado de amigo, por ele ser escravo. Ou seja, a situação de escravidão impossibilita-se de qualquer aproximação de indivíduos que ocupam papéis sociais distantes e distantes.

E por fim, neste drama da escravidão presente na obra “Úrsula”, destaco mais uma passagem que ocupa um papel de denúncia ao drama da escravidão. Assim diz a autora:

Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: — És meu! – Ele curvou a fronte, e humilde, rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E, entretanto, este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente, como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar! (p.34)

 Aqui vem a questão: quem deu ao branco do direito de escravizar o negro? E a escravidão o que é? A cadeia infame e rigorosa. E este posicionamento da autora se faz presente ao longo de todo romance/drama de Úrsula. Está presente no tratamento dado pelo comendador Fernando P. aos seus escravos, ou ainda na história e trajetória de “Suzana”.

Agora vamos ao outro drama. O drama vivido pelas mulheres, brancas ou não, que são consideradas “objetos” dos desejos e das vontades dos homens. Tendo inclusive seus destinos definidos por eles. A tal ponto que elas são incapazes de se libertar. Em várias passagens as vontades das mulheres são dominadas pelas forças, pelo desejo e pelo tratamento dispensado pelos homens. E mesmo quando estes homens manifestam seu amor por uma mulher o fazem como uma forma de justificativa de seu domínio sobre elas. Mas como citei algumas passagens no caso do drama da escravidão, devo fazer o mesmo aqui.

A primeira formada de sexismo, apontado pela autora, está na própria cultura masculina daquela sociedade, em que o homem tem a capacidade de colocar as mulheres em situação de completa exposição social. Diz assim a autora:

Oh! O sol é como o homem maligno e perverso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! E depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima! A donzela e a flor choram em silêncio, e o seu choro ninguém compreende! (pág.19-20).

Já em outra passagem é apresentada uma segunda forma de sexismo, ainda tão presente atualmente, que é a figura paterna e seu tirocínio sobre sua esposa e sua prole. Assim diz a autora:

É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura.

Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher.

Quantas vezes na infância, malgrado meu, testemunhei cenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que revoltavam! E meu coração alvoroçava-se nessas ocasiões, apesar das prudentes admoestações de minha pobre mãe. (p.43)

A grandiosidade desta obra é muito atual e merece ser lida e levada aos alunos do ensino fundamental e médio. Não por ser uma história escrita por uma mulher negra, mas por ser uma obra que tece as teias de nossa identidade. Por este motivo convido você leitor a ler também “Gupeva” e poemas desta grande escritora: Maria Firmina dos Reis.

E para terminar, deixo aqui uma estrofe do poema “Súplica” desta grande autora:

Dá, Senhor, que breve passe

Sobre a terra – o meu viver;

Bem vês, a flor desfalece

Da tarde no esmorecer;

Entretanto a flor é bela,

É bela de enlouquecer. [...]

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

MARIA FIRMINA DOS REIS

 Por Geraldo Fonte Boa

Ilustração tirada do site: https://mondru.com/book-author/maria-firmina-dos-reis/ 
a quem registro os créditos.

Mulher, negra (o que vem primeiro, não sei, não sei), professora, escritora, ficcionista e poeta, maranhense, brasileira. O que mais se pode dizer desta mulher que, apesar de todos esses substantivos, não é capaz de a definir, a delimitar, ou ainda a abranger.

Maria Firmina, nasceu na cidade de São Luís do Maranhão, aos 11 de março de 1822, - filha da mulata forra Leonor Felipa dos Reis e do comerciante João Pedro Esteves -, e ficou encantada em 11 de novembro de 1917, quando morava na pequena Guimarães, também no Maranhão. Maria Firmina se definia como negra e bastarda. Mas era sua condição social não a limitava ou a impedia de fazer e ser o que quisesse ser. Tornou-se professora de primeiras letras na comarca de São José de Guimarães, e se fez da palavra e pela palavra. A palavra era seu ofício, e pela palavra levantou a bandeira contra a situação social do negro e, principalmente, da mulher negra.

A obra de Miria Firmina traz a palavra usada como espada para abrir a sociedade brasileira para se perceber o racismo, o preconceito e a discriminação. De maneira sutil, singela e leve, Maria Firmina diz o que tem a dizer e, ao revelar a realidade das senzalas, revela detalhes da formação da sociedade brasileira, que ao longo do século tentam camuflar, silenciar, apagar.

As espadas e facas utilizadas por Maria Firmina para cortar, retalhar e fazer vir à luz a realidade do interior da sociedade brasileira de seu tempo é a ironia, a metáfora e a sutilidade. E a forma elegante que usa de sua ficção, envolve o leitor e o leva para ver a sociedade por dentro, destacando o sexismo, a violência, o preconceito, o lugar de mando do homem branco, e vai, por dentro, fazendo com que o leitor rasgue as entranhas desta sociedade até chegar ao quase desespero irônico. Por isso seus escritos são comparados com a genialidade de Machado de Assis, Castro Alves, ou um Cruz e Souza, ou ainda Lima Barreto. Mas vejam, nenhum desses homens podem ser comparados a ela, devido ao seu lugar de fala. Ou seja, o lugar da palavra.

Maria Firmina fala a partir da senzala. A partir de sua vida como mulher negra. Deste pertencimento. É a partir deste lugar que a voz de Maria Firmina dos Reis ecoa e alcança todo o território brasileiro no final do século XIX. E hoje, gerações inteiras nunca ouviram falar desta mulher. Silenciaram-na.

A obra de Maria Firmina está esquecida, como a obra de várias outras mulheres de seu tempo, como Júlia Lopes de Almeida, Chiquinha Gonzaga e tantas outras. Mas abrir o livro, Ursula, pode ser um bom começo para resgatar e trazer aos nossos dias a sutiliza, a ironia e o debate de temas ainda tão necessários como o preconceito, o racismo e principalmente o sexismo. No entanto, não podemos esquecer de outro aspecto de sua existência, da existência de Firmina para além da escrita: o “ser-mulher”, o “ser-negra” e o “ser-educadora”.

 Talvez estes aspectos de sua existência possam ser iluminados pela sua literatura, pelas suas palavras. O “ser-mulher” vai além do sexismo e ao mesmo tempo o condena; o “ser-mulher” é o construir-se enquanto pessoa, que não precisa do “ser-homem” para se diferenciar ou construir-se. O “ser-negra”, da mesma forma e com a mesma intensidade, assumindo seu lugar no mundo e na história, e construindo-se a si mesma a partir desta identidade. E, finalmente, o “ser-educadora” que aponta para a necessidade de recolocação desta profissão no centro da sociedade brasileira.

Maria Firmina dos Reis ainda se encontra à margem da tradição literária brasileira, apesar de seu talento magnífico, que se colocou a serviço da problematização do lugar da mulher e do negro, não só do Brasil do final do século XIX, mas ainda no Brasil atual. Então, resgatar a necessidade de ler Maria Firmina dos Reis é possibilitar um diálogo “irônico”, sutil e realista de outras camadas sociais que hoje se encontram à margem da sociedade.

Vamos à leitura de “Ursula” para começar. Quem sabe assim possamos trazer sua voz e sua palavra como meio de conhecer a nós mesmos.

Pode começar a ler... eu vou junto. E, depois, voltaremos aqui para conversar sobre quais palavras de Maria Firmina encontraram ecos em nós.

Vamos lá.