sábado, 30 de dezembro de 2023

RITUAL DE DESCOROAMENTO DA RAINHA PERPÉTUA DE SANTA IFIGÊNIA EM ITAÚNA

IFIGÊNIA 

Geraldo Fonte Boa[1]

Considerações iniciais

O ritual que irei descrever neste texto foi resultado de minha observação atenta realizado quando do "descoroamento" da Rainha Perpétua de Santa Ifigênia Dona Sãozinha, de Itaúna, MG. Por ser resultado de minha observação, pode haver alguma discrepância devia a percepção de alguém de fora do movimento do Reinado, ou do Congado. Isso porque o Congado a gente aprende e apreende a partir da convivência e da participação de seus festejos. E mesmo acompanhando o Congado de Itaúna, que aqui é chamado de Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, foi a primeira vez que tive a oportunidade de acompanhar este ritual. Se a descrição que faço aqui, tiver algum elemento que não corresponda a verdade dos fatos, peço que anote e que me comunique para que eu possa corrigir e também aprender. Mas tenha a certeza que o que descrevo aqui é o melhor que pude fazer para ser fiel ao ritual e respeitoso ao povo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário e aos parentes e amigos da família de D. Maria da Conceição de Jesus, D. Sãozinha.

Contexto

Tem rituais que a gente só tem a oportunidade de ver uma única vez, ou pouquíssimas vezes na vida. Embora tenha pessoas que, em toda sua existência, não tiveram e não terão a oportunidade de conhecer alguns rituais, diferentes, significativos e muito bonitos. E o ritual de "descoroamento" de uma rainha, em seu leito de morte, é um desses rituais. Único em sua forma, simples em seus gestos, mas pleno de símbolos e de significados. Este ritual ocorreu durante o velório de uma Rainha do Congado, ou como é chamado aqui em minha cidade, uma Rainha Perpétua do Reinado. Pois bem. D. Maria da Conceição de Jesus, com 98 anos de idade faleceu. Ela era Rainha Perpétua de Santa Ifigênia e por muitos anos comandou a festa do Reinado em nossa cidade. Sua residência era a sede de três ternos ou “guardas” de congado: uma guarda de Congo, um Candombe e uma guarda de Vilão. Sua casa simples era um “quartel” do Reinado e ela, como Rainha Perpétua era quem comandava a festa. Em todo dia 01 de agosto era sua obrigação levantar a Bandeira de Santa Ifigênia em seu terreiro, e dar o aviso que aquele ano teria festa. E a festa se estendia por 15 dias consecutivos, como muita dança, comida, bandeiras, foguetes, muita música e dança aos sons dos tambores, caixas, reco-recos, gungas e patangomes. Uma expressão firme de força e de fé.

Pois bem, como todo ciclo de vida acaba, a Rainha D. Sãozinha também chegou ao fim de sua trajetória. Faleceu. Então fomos ao velório. Para começar, não foi um velório comum. Foi o velório digno de uma Rainha. Cada capitão de guarda que chegasse ao velório fazia sua saudação a rainha falecida com muita oração e muita cantiga. As caixas silenciaram, os reco-recos, os tambores, não tocaram naquele dia. O povo, visivelmente abalado e condoído pela preciosa perda, traziam em seus cânticos a dor e a certeza de que a Rainha já estava no céu com Senhora do Rosário.

O ritual   

Passou-se as horas e aproximadamente duas horas antes do sepultamento, o capitão-mor, acompanhado por mais dois capitães da irmandade das Sete Guardas, da qual pertencia aquela Rainha, começam os preparativos para o “descoroamento” da Rainha falecida. Coloca-se um pouco acima da cabeça da falecida a sua coroa, sobre seu corpo estende o manto e sobre suas mãos o cetro, com a insígnia de Rainha. Então todos se aproximam. Os capitães de Guarda presentes, ficam de um lado e do outro, e nos pés do caixão ficam as mulheres filhas e netas da Rainha ali presentes.

O Capitão-mor, Senhor Mário, no exercício de sua função, preside a cerimônia e inicia o rito de “descoroamento”. Reza em voz baixa, praticamente inaudível. Esta forma de rezar parecia ser proposital, pois somente os capitães que lhe estavam mais próximos dele poderiam ouvir as palavras de suas orações. Depois puxava um canto, e todos repetiam cantando as palavras puxadas pelo Capitão-mor. O canto tinha a seguinte letra:

“Virgem do Rosário

Ela é a nossa mãe

Clamamos por ela

Em nossas orações”

Ao terminar o canto por parte da assembleia, o capitão-mor voltava a fazer sua oração e puxava o canto novamente. Este pequeno ritual introdutório se repetiu por sete vezes. Ao final das sete vezes, o capitão-mor dava o “Viva a Nossa Senhora do Rosário”, o “Viva o Rosário de Maria” e o povo respondia, com voz embargada: "Viva!!!".

Em seguida, desta vez acompanhado por um tambor, com toque compassada e fúnebre, puxava um novo canto, com um verso simples, que dizia assim:

“Virgem Maria, Mãe do Céu

Esta Rainha está lá no céu,

Pois a Glória seja ao Pai

Oh! Lá no céu, oh! Pai Eterno”

Após ser cantado duas vezes pelo capitão-mor e repetido duas vezes pela assembleia se repetia este mesmo canto por três vezes.

Ao término desta segunda parte, o capitão-mor puxou novo canto, dando início ao ritual de “descoroamento” propriamente dito.

E o canto era:

Descoroai, Descoroai, Senhora

Descoroai, essa nossa Rainha

Esta coroa é sagrada

Esta coroa é divina.

O que era repetido pela assembleia em resposta ao canto do capitão-mor. E o mesmo se repetia por três vezes.

Em seguida, o capitão-mor, com a ajuda de outro capitão, com seus bastões, erguia a coroa, sem nela se tocar, usando somente os bastões, cantavam:

“Entregai, Senhora

Entregai, Senhora

Estregai esta coroa

Ela é de Nossa Senhora”

E repetia mais também por três vezes, sempre com a resposta do canto pela assembleia. Enquanto se cantava a coroa erguida pelos bastões do capitão percorria todo o corpo até chegar aos seus pés e era entregue pelos bastões as filhas e netas da Rainha falecida.

Este mesmo ritual se dava para o manto. E acompanhado do canto se erguia o manto, com a ajuda dos bastões dos demais capitães presentes, sempre tendo o cuidado de não se tocar com as mãos o objeto erguido da rainha.  E assim conduzia o manto por toda a extensão de seu corpo até seus pés onde fazia a entrega do mesmo as filhas e netas da Rainha falecida.

Para a retirada do manto se cantava e era repetido pela assembleia o seguinte canto:

Entregai, Senhora

Entregai, Senhora

Entregai este manto

Ele é de Nossa Senhora.

O mesmo acontecia com o cetro da rainha, que era acompanhado do mesmo canto com a seguinte letra:

Entregai, Senhora

Entregai, Senhora

Entregai esta insígnia

Ele é de Nossa Senhora.

Ao terminar o ritual, o capitão-mor puxava então o canto de encerramento, também por três vezes repetido, com os seguintes dizeres:

Descoroou, Descoroou, Senhora

Descoroou esta nossa Rainha

Ela foi descoroada com a coroa Divina

E o capitão-mor deu viva a nossa Senhora do Rosário e ao Rosário de Maria. E assim termina o Ritual de Descoroamento.

Desfecho

Mas o velório segue, nem os capitães nem a assembleia se mexe. Cada capitão presente puxa um canto em honra a rainha descoroada, destacando sua missão cumprida e seus ensinamentos, bem como a louvores a Nossa Senhora do Rosário. E cada canto era acompanhado e respondido pela assembleia presente. E assim se repeti por dez a quinze minutos. E finalizando o velório seguiu ao cortejo até a capela do Rosário e, de lá ao cemitério central. Tanto na capela do Rosário, quanto no Cemitério, a assembleia pode se manifestar engrandecendo a missão de D. Sãozinha, e sempre com mais cânticos  e mais louvores tanto a Rainha descoroada, quanto a Nossa Senhora do Rosário.

D. Sãozinha cumpriu sua missão e deixou a coroa para suas filhas e netas que deverão decidir qual delas será coroada como Rainha Perpétua de Santa Ifigênia e se responsabilizará para dar continuidade a Festa do Reinado, a Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário.

E para encerrar é preciso destacar uma particularidade de nossa cidade. No alto do morro, se ergue duas capelas: a capela oficial de Nossa Senhora do Rosário e a Capela das Sete Guardas. Esta Capela das Sete Guardas foi construídas à revelia da Igreja Católica, quando o Bispo D. Cabral, na década de 1940, resolveu proibir a entrada dos congadeiros em suas Capelas do Rosário com seus tambores, danças e cânticos. Então, com a participação de D. Sãozinha, parte dos congadeiros deixaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e criaram a Irmandade das Sete Guardas e construíram uma capela para dar sequência á sua devoção a Nossa Senhora do Rosário. Vale ressaltar que a capela de Nossa Senhora do Rosário -  a oficial - permaneceu fechada durante o cortejo da Rainha e ela recebeu na Capela de Nossa Senhora do Rosário -  a não oficial - as últimas homenagens antes de ser conduzida ao cemitério central. Mas nem por isso tirou o brilho e a dignidade deste povo que celebrou com a vida sua devoção a Nossa Senhora do Rosário.

Viva, Nossa Senhora do Rosário! Viva!

Viva, o Rosário de Maria! Viva!



[1] Professor de História, Filosofia e Sociologia. Membro da Academia de Letras de Pará de Minas e membro-fundador da Academia Itaunense de Letras. Estudioso da cultura popular do Reinado em Itaúna.

Um comentário:

  1. Parabéns, professor Phonteboa. Muito interessante o relato de descobrimento. Eu não conhecia esse ritual. Com suas palavras fui criando um filme mental e parecia estar assistindo as cenas! Obrigado por compartilhar!

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