Obra primorosa de Mary del Priore, a coleção "História da Gente Brasileira" é um mergulho na história que não aparece nos livros didáticos das escolas brasileiras. Uma história do cotidiano... dos hábitos... dos costumes... do fazer miudinho... da comida... das roupas... do modo de produzir o dia a dia... das técnicas produtivas... dos cantos de trabalho... Nesse sentido, esta coleção, dividida em 04 volumes, deveria estar entre as leituras prediletas de nossa gente, pois é um encontro consigo mesmo. Vale a pena ler!!
Com todos os créditos transcrevo abaixo um pequeno trecho tirado do volume 1 desta coleção, onde retrata o cotidiano das cantigas de trabalho dos homens e mulheres escravizados - os vissungos. Veja que maravilha...
" Em Minas Gerais, os ares das fazendas onde ainda havia mineração associada à lavoura eram embalados por cantigas de trabalho dos escravos. Esses cantos eram chamados de “vissungos” – alguns adaptados às fases de trabalho nas minas, outros parecendo cantos religiosos ajustados à ocasião. Conta-nos Aires da Mata Machado Filho que os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Antes mesmo do nascer do sol, dirigiam-se à lua, em cantigas de evidente teor religioso. Pela manhã, entoavam um Pade Nosso, pedindo a Deus e Nossa Senhora que abençoassem seu trabalho e comida: “Otê! Pade Nosso cum Ave-Maria, securo câmera qui t’Anganamzambê, iô...”. A seguir, o cantador mestre acordava os companheiros: “Galo cantou, rê rê/ Cacariacou/ Cristo nasceu/ Galo já cantou”. À lua era pedido que “furasse o buraquinho do dia”: “Ai! Senhê!/ Ô... ô imbanda, combera ti, senhê”. Ao meio-dia, o cantador avisava à mulher de serviço que o sol ia alto: era hora do almoço: “Andambi, ucumbi u atundá...? Sequerende...
[...] Para ajuntar terras nos montes, apressar a marcha do cavalo, avisar sobre o encontro de um diamante, falar “língua de branco”, enterrar os mortos, ironizar o mau alimento que lhes era servido, alertar sobre fogo nos campos, perseguir a caça no mato, fugir para os quilombos, lembrar os pais, pedir uma roupa nova, contra os feitiços – enfim, para tudo –, cantavam os cativos. Os “vissungos” eram parte importante do cotidiano das fazendas, e sua música marcava o ritmo dos trabalhos e dos dias, informando sobre o que se passava. Durante o trabalho das fiandeiras e capinadores da roça, e no mutirão de construções, outros cantos enchiam as serras mineiras. Cantava-se até para reclamar do frio: “Auê/Duro já foi senguê”. Ou pedir chuva: “Ongombe coi i pique.” Os escravos cantavam em todas as ocasiões possíveis. Embora tais coleções de música não tenham sobrevivido, há informações sobre a capacidade que tinham os cativos de improvisar com palmas e vozes. A dança vinha junto: “Assim que dois ou mais começavam a dançar, outros se juntavam ao grupo”, com “todas as variedades concebíveis de contorções e gesticulações”, segundo observou o viajante inglês Robertson. Nas senzalas ou nos zungus, pontos de reunião espalhados pela cidade, não faltavam os batuques, que muitos estudiosos percebem como o berço do samba. Duelos de trabalho, notadamente entre as raspadeiras de mandioca, que se desafiavam sentadas nas tulhas e casas de farinha, eram outra maneira de se divertir trabalhando. Nas horas vagas, nas fazendas e engenhos ou na cidade, cativos se dedicavam à feitura de belos objetos funcionais, religiosos e decorativos. Os urdidos com fibras naturais eram os mais comuns: esteiras, cestos, chapéus de palha e capas. Na tecelagem decorativa, os angolanos se revelavam artistas excepcionais.” (Mary del Priore, História da gente brasileira - Colônia, 2022, p. 203-204)